Autorretrato

Se a vida fosse um jogo de xadrez, eu seria uma rainha com síndrome de peão emboscada em xeque sem saber pra que lado ir. Porque todas as opções levam ao xeque mate. E não interessa se quem morre de xeque é o rei, porque emboscar uma rainha é uma situação bem mais complicada. Bom, talvez não uma rainha com problemas psicológicos.

Muitas vezes eu me pego pensando se as pessoas realmente amam ou se todo o sentimento do mundo é só um simulacro. Isso me assusta e, cada vez mais, eu tenho medo. Não deveria. O medo do ridículo, de ser enganado, é estúpido. Querendo ou não, somos todos marionetes, peças de xadrez, guiadas pelo contexto e pelo que nos favorece. Somos o jogador como peça. Tudo nos vem quando interessa, senão a aproximação é vetada por nós mesmos. Mesmo que exista a culpa, no fim é só porque não somos pessoas boas. Não somos inteligentes ou bondosos, apenas interesseiros, e o medo existe pra proteger todos esses interesses.

Interessante é que disse exatamente o contrário para alguém umas semanas atrás. E, em alguns momentos de lucidez, consigo ainda acreditar nas coisas. Mas em momentos de loucura, como esse? Momento em que os olhos faíscam e a posição própria é de ataque, para qualquer lado? É pedir demais, demais.

Eu não minto. Sou muitas, apenas. Muitas convivendo juntas na mesma casa, as brigas são constantes. E, não, eu não falo de outros, não. Falo de todas as eu coexistentes nessa doença. E, não, o sentimento não é simulacro. Todas elas amam. Agora, o quê, já são outros quinhentos.

Dança da Chuva

No que eu voltei, estavam todos amontoados sob o toldo, ou qualquer que seja o nome da cobertura do ponto de ônibus. As pessoas têm medo da chuva.

Mas, se “a chuva, voltando pra terra, traz coisas do ar”, que se há para temer? Tudo bem, o ar urbano definitivamente não tem as melhores coisas, mas ainda assim. É só chuva. Lágrimas divinas que diminuem a revolta e o desespero de ver o que o ser humano é capaz de fazer, pois que se o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, porque Seu pranto não teria o mesmo efeito do meu? Heresia! Não és divindade, mulher! Mas imaginar é sempre válido, então imagino o que se passa na cabeça dos amontoados.

Nada vem à mente. Provavelmente é só instinto, aquele que também te regia toda vez que o céu começava a gotejar, naquele tempo em que o trovão ainda não tinha dominado teu peito e tudo era calmo. A chuva, na verdade, era um grande distúrbio, e continua sendo, para os outros. Deve entendê-los. Me desvio do amontoado e tiro os óculos, me permitindo ser batizada pela natureza.

E, no que eu me continha, a criança interior dançava.

Feriado

E então, vem aquele sentimento de fim de domingo. Uma ansiedade paradoxal. Um cansaço, de ter feito nada durante os últimos dias, uma ânsia por fazer algo, mas também o impulso de querer que a rotina não volte, a massacrante, que pesa e torna uma luta a simples movimentação. O medo de não ser capaz de fazer tudo, de cumprir todos os prazos. O medo de um colapso.

Feriados são sempre janelas no tempo para a procrastinação. Um limbo temporal, em que as horas correm e escorrem e mal se nota. Chega no fim do ‘domingo’ e nunca fizemos tudo o que tínhamos por fazer – ou, no meu caso, absolutamente nada. Os desenhos por completar, o texto a ser lido, os textos a serem escritos, o livro a ser terminado (bibliotecas, tsc, tsc), o quarto a ser limpo e arrumado. E é mais um feriado que termina com a sensação de culpa. Era tudo para amanhã. Ou depois. Sexta feira, no máximo.

Malditos prazos. Me estressam. Ainda bem que aprendi a escrever.

Ode à Gataiação

Após meses, um dia pra gataiar.

Uma delícia. Horas e horas na cama, lendo, com paradas regulares para assistir às nuvens dançando no céu azul de fim de verão.

Uma boa trilha sonora de fundo, sem pensar em nada, cantando para que a querida me desse atenção, que o moinho mundo trituraria os sonhos dela.

Fazendo nada, pensando nada, sem tédio ou inquietação, permitindo ‘carpediemzar’. Observando e absorvendo tudo o que toca, por todos os sentidos.

O tempo escorrendo pelos meus lençóis e minhas coxas nuas a cada espreguiçadela, em cada ronronar uma onda de prazer.

A carência de toques; porém, o contentamento, com uma companhia antiga e inanimada, com o amargor e a doçura do café ao chocolate.

O silêncio da casa vazia, apenas os sons distantes urbanos para aguçar os ouvidos felinos.

Sem perturbações.

“Fora desse quarto, o mundo tanto faz.”

E que eu me permita mais dias assim.

Independência

O restaurante quase vazio.

Ela entra, sua presença forte, os olhos cobertos pelas lentes escuras dos óculos aviador, a boca em uma expressão dura, a postura de quem se encaminha para uma batalha. É uma mulher pequena, mas toma conta do salão apenas por chegar.

Uma mesa no canto. Ela deposita a bolsa tiracolo numa das cadeiras, e o livro, que trazia nas mãos, encontra seu espaço em cima do tampo de madeira. É observada, ela pode sentir os olhares enviezados, mas não entende o porquê. Tira os óculos e faz o pedido, “Uma cerveja, por favor”. Concentra-se no livro, herege, anota observações nas margens das páginas a lápis.

A cerveja chega e, sem desviar o olhar enevoado do conteúdo literário, sorve o primeiro gole. Quase um analgésico. Ninguém precisa ver a tempestade que destrói quase toda sua sanidade, agarra-se mais ao estudo.

Uma mulher. Bebendo. Sozinha. Na hora do almoço. As pessoas são tão indiscretas! Encaram sem o menor pudor, perguntam-se em murmúrios se foi esquecida, ou se foi deixada. Nada que importe para elas, essas malditas curiosas pessoas que não sabem cuidar da própria vida. Ela sabe que a tempestade nem goteja para quem a observa, se perguntam por serem abutres revirando a carcaça da vida alheia, não por verem que algo está errado. Detestáveis.

Ali passa a tarde inteira. Pessoas entram e saem, fazendo-lhe o favor de repararem em sua solidão e seu silêncio, e suas cervejas. Ela os ignora. Tem mais o que fazer com seus pensamentos.

Ao fim da tarde, quando o Sol já faz sua belíssima despedida, bem de frente para a janela ao lado do qual ela se alocou, a mulher fecha o livro. Observa, imóvel, por alguns segundos a dádiva concedida e agradece, mentalmente, por sua única bela visão naquele dia tempestuoso. Paga pelas treze cervejas e sai, impassível, pela mesma porta que entrara.

Fora, afinal, um bom dia de progresso em sua independência.

Guerra

Não deu nem tempo de eu assentar e escrever que tudo estava lindo, apesar das dificuldades de uma guerra. Não deu pra dizer que eu estava feliz, e que estava esperançosa, e que as coisas finalmente pareciam estar dando certo, apesar de ser uma guerra.

Não pude contar sobre o tsunami dentro de mim quando ele me olhou. Não deu tempo de eu escrever sobre o quanto eu adorava o sorriso dele, ou o carinho que me dispensava. Não deu tempo de dizer o quão especial eu me senti, nem o quão intenso e arrepiante foi estar nos braços dele. Nem mesmo pude dizer como foi bom me sentir segura e em casa naqueles abraços todos.

Não deu pra falar sobre o que ele disse, ou sobre como ele reagiu. Não tive tempo de dizer o que o meu olhar já berrava. Não deu tempo nem de respirar direito e me desviar do golpe da katana.

Era uma guerra. Acabou.

E nada ficou bem…

O ano tá, finalmente, acabando. Mas eu ainda quero chorar.

Quero chorar porque me sinto sozinha. Porque, depois de muito batalhar, perdi alguém que amei, que ainda amo mais que tudo nessa vida, e que me faz uma falta extrema. Porque finalmente me apaixonei de novo, mas me apaixonei sozinha. Porque tenho medo das mudanças que o ano próximo trará.

Quero chorar porque não fui capaz de ser feliz, não fui capaz de fazer ninguém feliz.

Desabafo

E não é que umas tacinhas de vinho e o calor me deixaram à flor da pele?

Fico aqui, sozinha, nua, desprotegida, desejando-te. Sonolenta, quase sentindo os teus braços em volta de mim, me acalentando. Minha corrente elétrica aumentando enquanto a mente divaga no mar de vinho branco seco.

Desejo o calor do teu corpo junto ao meu, e o toque da tua pele na minha. O roçar de lábios e de pelos. Me abraça, meu bem, até me absorver e poder sentir o meu teor no teu sangue quando estiver longe. Me beije o corpo inteiro, meu amor, cada milímetro, até beijar a alma. O calor é suportável, me aqueça, me complete. Eu te amo.

Mas continuo sozinha, como vai ser pelo resto dos dias. E eu choro de saudades.

A Árvore que Tinha Medo de Insetos

Era uma vez, uma menina. Um dia, ela precisou fugir, e fugiu. Chegou a um bosque bonito, de árvores altas e frondosas, com esquilos e coelhos por toda parte. O solo era atapetado com gramíneas, e pequenas borboletas coloridas voavam ao longe. Os pássaros chilreavam, e o mormaço deixava o clima perfeito.

A menina tinha um livro, grande e bonito, que estivera com ela a vida toda. Ela encontrou uma clareira no bosque, confortavelmente iluminada pelo mormaço, e se recostou numa das árvores. Abriu o livro sobre os joelhos dobrados e leu, novamente, página por página daquele volume já surrado. Apreciou o toque do papel e o aroma característico que ele exalava.

Ao terminar, o sol já se punha. A tristeza e a desesperança não tinham ido embora, ela notou, apesar da distração. Não queria ir pra casa. Deitou-se na relva macia e observou o céu, perdida em seus pensamentos. Uma estrela cadente. Queria ser uma árvore. Árvores abrigavam vida. Eram bonitas e fortes. Permitiam vida. Era o que queria fazer. E adormeceu.

Acordou com fome. E, em questão de segundos, a fome passou. O alimento a satisfazia por inteiro, cada parte de seu corpo. Sentia-se fresca, o vento balançava suas folhas com carinho. Seu desejo tinha sido concedido. Finalmente, era feliz.

Tudo estava bem, até que um besouro começou a subir em seu tronco. E a furá-lo. Ela entrou em pânico. Aquilo doía, e ela se sentia arrepiar de cócegas e nojo a cada passo do animal. Era um besouro. Imenso. Se tivesse um coração, ele estaria a todo vapor agora. Notou então todas as joaninhas nos seus galhos e uma colmeia que se formava. Larvas e pulgões comiam suas belas folhas. Mariposas imensas pousavam em sua casca, e toda sorte de artrópodes a escalavam. Era pior que em seus piores pesadelos.

Passou dias aterrorizada. Não entendia como as outras árvores conseguiam suportar o toque nojento daqueles animais, com suas perninhas de quitina e zumbidos irritantes. Pra piorar, os malditos apareciam de surpresa, vindos de todas as direções, e eram mais raros os que ela conseguia espantar do que os que se apoderavam de seu corpo. Chorara muito. Não podia viver com aquilo. As sensações causadas pelos pequenos animais eram repudiantes, assim como seus hábitos. O asco predominava nela de tal forma que parou de se alimentar. Ficou fraca, seu tronco já não tinha a mesma consistência, suas folhas começavam a cair, seus galhos murchavam. E então, os insetos começaram a ir embora.

Com os insetos, os pássaros e os esquilos também partiram. A árvore ficou sozinha, inconformada de ter sido abandonada por aqueles de quem gostava. Já não tinha forças pra chorar. Suas raízes não absorviam mais nada, devido à tristeza e à desesperança. Imóvel, à beira da morte, a árvore olhou para o céu. Uma estrela cadente. Queria ser menina de novo. Quando menina, podia ler, e cantar, e abraçar, e escrever, e respirar, e comer doces. Podia sorrir e cirandar, ir à casa dos amigos de bicicleta para uma limonada numa tarde quente e usar vestidos bonitos que vovó lhe fazia. Era o que queria fazer. E adormeceu.

Acordou exaltada, sentindo que algo lhe subia pela perna. Sentou-se, de súbito, e viu um pontinho vermelho quase alcançando seu joelho. A menina sorriu. Pegou uma folha seca na relva e deixou que o animalzinho subisse nela. Colocou a joaninha na relva, levantou-se, bateu a saia do vestido e voltou para casa. Era uma tarde quente. Vovó a esperava com uma deliciosa limonada. Era feliz.

Pernilongos

Tinha ido cedo para a cama aquela noite. Era início de primavera e os pernilongos já não a deixavam dormir há dias. Parecia implicância: toda madrugada, entre três e quatro da manhã, o zumbido infernal bem no pé do ouvido, como que o sussurro de um amante, vinha importunar seu sono. Sem a vantagem dos carinhos após a interrupção das aventuras oníricas.

Laura odiava os malditos pernilongos. Era muito alérgica a qualquer picada de inseto e, na última semana, já conseguira diversas delas – algumas até já haviam se tornado machucados, de tanto coçar. Mais de uma vez, ao tentar espantá-los, sua mão acertara um dos animais, mas nunca era rápida o suficiente para matá-los. O inseticida não parecida ter qualquer efeito sobre a progressão geométrica de acordo com a qual os mosquitinhos se multiplicavam, e todos os repelentes que experimentara tinham se mostrado inúteis.

O pijama de mangas compridas e as várias cobertas ajudavam. Por isso, apesar dos vinte e sete graus, Laura fez todo o ritual de equipar a cama e vestir as roupas folgadas de frio. Os cabelos também consistiam em proteção, por isso ela os manteve soltos. Deitou-se, enfim, após um dia longo para o descanso dos justos.

Bzzzzzzzzzz. Eram três e sete da madrugada. Deitada de bruços, com a cabeça virada para o lado esquerdo, Laura mudou de posição, virando-se para o outro lado. O cabelo percorreu uma trajetória no ar, mas antes que pudesse cair de volta no travesseiro, uma barreira o interrompeu. Algo estava atrás dela.

A jovem despertou-se rapidamente. Todo o calor que sentia desapareceu com o congelar de seu sangue e o retesar de seus músculos. Apesar do medo, a curiosidade tornava necessário que Laura olhasse por cima do ombro. E ela não pode crer no que via.

Era um sonho, só poderia. O imenso dragão laranja levitava, com um bater de asas leve e um rosto sonolento, e abaixara a cabeça até quase tocar o travesseiro de Laura. Ela se sentou e observou a criatura, sem qualquer sinal de medo. Os olhos anil do animal se fecharam calmamente quando a jovem acariciou o focinho escamoso e brilhante. O zumbido de pernilongos cessara. Os olhos da jovem estavam marejados.

“Você voltou.”

“Eu nunca estive longe, pequena Laura.” – O toque mental de Druida, o dragão, após vinte e dois anos, era reconfortante – “Você só não precisava de mim.” – o animal se acomodou nos espaço vazio da cama de casal, a cauda e metade da barriga para fora dela. As patas traseiras tocavam o chão e mantinham a barriga na altura da cama, permitindo que Druida ficasse confortável, apoiando as patas dianteiras no travesseiro.

“Como entrou aqui?”

“Do mesmo jeito que todos os outros pernilongos. Pela janela da cozinha.”

“Você era… Um pernilongo?” – A jovem parecia surpresa.

“Posso tomar a forma que convier aos meus propósitos.” – o corpanzil do dragão ia diminuindo, até que atingiu o tamanho ideal para que as quatro patas ficassem em cima do colchão – “Sou só mais uma centelha de energia no universo. Já esqueceu de tudo o que te ensinei?”

A jovem enrusbeceu de vergonha ante a demonstração. “Não, Druida.”

O dragão bufou em resposta, como se risse. Aninhou sua grande cabeça triangular no colo de Laura, e a moça sentiu sua alma fraquejar.

“Tudo tem sido tão difícil, Druida. Estou a ponto de desistir.”

“Não tenha medo. Você conhece a força da magia que existe dentro de ti. Acredite nela.”

As lágrimas escorriam pela face ruborizada da jovem. Desde os seus sete anos, Laura sonhava em rever seu guardião, e ali estava ele, colocando-a novamente em seu caminho. A paz preenchia sua alma um pouco mais a cada segundo. Estava segura novamente.

“É hora de dormir de novo, campeã.”

A moça bufou, como uma criança sem sono que vai para a cama só porque a mãe mandou.

“Você ainda vai estar aqui quando eu acordar?”

Druida tocou o peito e a testa de Laura com o focinho. “Boa noite, pequena Laura.”

“Boa noite, Druida.”

A jovem aninhou-se ao corpo morno do dragão – ainda muito maior que o seu – e adormeceu.

Laura acordou com frio. As cobertas estavam todas jogadas no chão, e ela estava sozinha. Tinha sido só um sonho. Olhou o relógio, ainda faltavam quarenta minutos para o despertador tocar. Não podia ter sido só um sonho. Voltaria a dormir.

A jovem pegou uma das cobertas que caira no chão. Não precisaria mais de todas, os pernilongos já tinham ido embora. Reaninhou-se na cama, fechou os olhos e bzzzzzzzzz.
Um último pernilongo saía. Laura sorriu com a alma e deu adeus ao velho guardião. Não voltaria a atentar contra os malditos mosquitinhos.