A Árvore que Tinha Medo de Insetos

Era uma vez, uma menina. Um dia, ela precisou fugir, e fugiu. Chegou a um bosque bonito, de árvores altas e frondosas, com esquilos e coelhos por toda parte. O solo era atapetado com gramíneas, e pequenas borboletas coloridas voavam ao longe. Os pássaros chilreavam, e o mormaço deixava o clima perfeito.

A menina tinha um livro, grande e bonito, que estivera com ela a vida toda. Ela encontrou uma clareira no bosque, confortavelmente iluminada pelo mormaço, e se recostou numa das árvores. Abriu o livro sobre os joelhos dobrados e leu, novamente, página por página daquele volume já surrado. Apreciou o toque do papel e o aroma característico que ele exalava.

Ao terminar, o sol já se punha. A tristeza e a desesperança não tinham ido embora, ela notou, apesar da distração. Não queria ir pra casa. Deitou-se na relva macia e observou o céu, perdida em seus pensamentos. Uma estrela cadente. Queria ser uma árvore. Árvores abrigavam vida. Eram bonitas e fortes. Permitiam vida. Era o que queria fazer. E adormeceu.

Acordou com fome. E, em questão de segundos, a fome passou. O alimento a satisfazia por inteiro, cada parte de seu corpo. Sentia-se fresca, o vento balançava suas folhas com carinho. Seu desejo tinha sido concedido. Finalmente, era feliz.

Tudo estava bem, até que um besouro começou a subir em seu tronco. E a furá-lo. Ela entrou em pânico. Aquilo doía, e ela se sentia arrepiar de cócegas e nojo a cada passo do animal. Era um besouro. Imenso. Se tivesse um coração, ele estaria a todo vapor agora. Notou então todas as joaninhas nos seus galhos e uma colmeia que se formava. Larvas e pulgões comiam suas belas folhas. Mariposas imensas pousavam em sua casca, e toda sorte de artrópodes a escalavam. Era pior que em seus piores pesadelos.

Passou dias aterrorizada. Não entendia como as outras árvores conseguiam suportar o toque nojento daqueles animais, com suas perninhas de quitina e zumbidos irritantes. Pra piorar, os malditos apareciam de surpresa, vindos de todas as direções, e eram mais raros os que ela conseguia espantar do que os que se apoderavam de seu corpo. Chorara muito. Não podia viver com aquilo. As sensações causadas pelos pequenos animais eram repudiantes, assim como seus hábitos. O asco predominava nela de tal forma que parou de se alimentar. Ficou fraca, seu tronco já não tinha a mesma consistência, suas folhas começavam a cair, seus galhos murchavam. E então, os insetos começaram a ir embora.

Com os insetos, os pássaros e os esquilos também partiram. A árvore ficou sozinha, inconformada de ter sido abandonada por aqueles de quem gostava. Já não tinha forças pra chorar. Suas raízes não absorviam mais nada, devido à tristeza e à desesperança. Imóvel, à beira da morte, a árvore olhou para o céu. Uma estrela cadente. Queria ser menina de novo. Quando menina, podia ler, e cantar, e abraçar, e escrever, e respirar, e comer doces. Podia sorrir e cirandar, ir à casa dos amigos de bicicleta para uma limonada numa tarde quente e usar vestidos bonitos que vovó lhe fazia. Era o que queria fazer. E adormeceu.

Acordou exaltada, sentindo que algo lhe subia pela perna. Sentou-se, de súbito, e viu um pontinho vermelho quase alcançando seu joelho. A menina sorriu. Pegou uma folha seca na relva e deixou que o animalzinho subisse nela. Colocou a joaninha na relva, levantou-se, bateu a saia do vestido e voltou para casa. Era uma tarde quente. Vovó a esperava com uma deliciosa limonada. Era feliz.

Pernilongos

Tinha ido cedo para a cama aquela noite. Era início de primavera e os pernilongos já não a deixavam dormir há dias. Parecia implicância: toda madrugada, entre três e quatro da manhã, o zumbido infernal bem no pé do ouvido, como que o sussurro de um amante, vinha importunar seu sono. Sem a vantagem dos carinhos após a interrupção das aventuras oníricas.

Laura odiava os malditos pernilongos. Era muito alérgica a qualquer picada de inseto e, na última semana, já conseguira diversas delas – algumas até já haviam se tornado machucados, de tanto coçar. Mais de uma vez, ao tentar espantá-los, sua mão acertara um dos animais, mas nunca era rápida o suficiente para matá-los. O inseticida não parecida ter qualquer efeito sobre a progressão geométrica de acordo com a qual os mosquitinhos se multiplicavam, e todos os repelentes que experimentara tinham se mostrado inúteis.

O pijama de mangas compridas e as várias cobertas ajudavam. Por isso, apesar dos vinte e sete graus, Laura fez todo o ritual de equipar a cama e vestir as roupas folgadas de frio. Os cabelos também consistiam em proteção, por isso ela os manteve soltos. Deitou-se, enfim, após um dia longo para o descanso dos justos.

Bzzzzzzzzzz. Eram três e sete da madrugada. Deitada de bruços, com a cabeça virada para o lado esquerdo, Laura mudou de posição, virando-se para o outro lado. O cabelo percorreu uma trajetória no ar, mas antes que pudesse cair de volta no travesseiro, uma barreira o interrompeu. Algo estava atrás dela.

A jovem despertou-se rapidamente. Todo o calor que sentia desapareceu com o congelar de seu sangue e o retesar de seus músculos. Apesar do medo, a curiosidade tornava necessário que Laura olhasse por cima do ombro. E ela não pode crer no que via.

Era um sonho, só poderia. O imenso dragão laranja levitava, com um bater de asas leve e um rosto sonolento, e abaixara a cabeça até quase tocar o travesseiro de Laura. Ela se sentou e observou a criatura, sem qualquer sinal de medo. Os olhos anil do animal se fecharam calmamente quando a jovem acariciou o focinho escamoso e brilhante. O zumbido de pernilongos cessara. Os olhos da jovem estavam marejados.

“Você voltou.”

“Eu nunca estive longe, pequena Laura.” – O toque mental de Druida, o dragão, após vinte e dois anos, era reconfortante – “Você só não precisava de mim.” – o animal se acomodou nos espaço vazio da cama de casal, a cauda e metade da barriga para fora dela. As patas traseiras tocavam o chão e mantinham a barriga na altura da cama, permitindo que Druida ficasse confortável, apoiando as patas dianteiras no travesseiro.

“Como entrou aqui?”

“Do mesmo jeito que todos os outros pernilongos. Pela janela da cozinha.”

“Você era… Um pernilongo?” – A jovem parecia surpresa.

“Posso tomar a forma que convier aos meus propósitos.” – o corpanzil do dragão ia diminuindo, até que atingiu o tamanho ideal para que as quatro patas ficassem em cima do colchão – “Sou só mais uma centelha de energia no universo. Já esqueceu de tudo o que te ensinei?”

A jovem enrusbeceu de vergonha ante a demonstração. “Não, Druida.”

O dragão bufou em resposta, como se risse. Aninhou sua grande cabeça triangular no colo de Laura, e a moça sentiu sua alma fraquejar.

“Tudo tem sido tão difícil, Druida. Estou a ponto de desistir.”

“Não tenha medo. Você conhece a força da magia que existe dentro de ti. Acredite nela.”

As lágrimas escorriam pela face ruborizada da jovem. Desde os seus sete anos, Laura sonhava em rever seu guardião, e ali estava ele, colocando-a novamente em seu caminho. A paz preenchia sua alma um pouco mais a cada segundo. Estava segura novamente.

“É hora de dormir de novo, campeã.”

A moça bufou, como uma criança sem sono que vai para a cama só porque a mãe mandou.

“Você ainda vai estar aqui quando eu acordar?”

Druida tocou o peito e a testa de Laura com o focinho. “Boa noite, pequena Laura.”

“Boa noite, Druida.”

A jovem aninhou-se ao corpo morno do dragão – ainda muito maior que o seu – e adormeceu.

Laura acordou com frio. As cobertas estavam todas jogadas no chão, e ela estava sozinha. Tinha sido só um sonho. Olhou o relógio, ainda faltavam quarenta minutos para o despertador tocar. Não podia ter sido só um sonho. Voltaria a dormir.

A jovem pegou uma das cobertas que caira no chão. Não precisaria mais de todas, os pernilongos já tinham ido embora. Reaninhou-se na cama, fechou os olhos e bzzzzzzzzz.
Um último pernilongo saía. Laura sorriu com a alma e deu adeus ao velho guardião. Não voltaria a atentar contra os malditos mosquitinhos.

Libertação

Estava em todos os tabloides. Fotos sorridentes, abraçando estranhos, em lugares que jamais estivera – e que nem queria estar. Aparecia ajudando pessoas e carpediemzando, um exemplo para os sessentões pelo mundo. Entretanto, aquele não era ele. Seu verdadeiro eu só saía de sua opulenta casa para o trabalho, quando o fazia. Percebera que as pessoas eram interesseiras e viam apenas sua riqueza e fama, jamais sua personalidade agradável, seu jeito divertido e maneiras delicadas – pelo menos, não fora das telas. Desde então, a tristeza começara a apossar-se de seu coração, e ele não sentia mais vontade de viver. Mesmo com a maior parte de seus compromissos tendo sido delegados a seu sósia, o qual sorria alegremente para as câmeras em seu lugar.

Um dia, decidiu que não dava mais. Queria viver. Queria voltar a ser anônimo, ter tudo o que lhe fora tomado pelo sucesso. Amigos. Família que o amasse e cuidasse. Um trabalho que exigisse menos e trouxesse o sentimento de realização que o teatro lhe trouxera por tantos anos. Sentia-se envelhecido e achava-se merecedor da tranquilidade e alegria que buscava. Então, viu a luz no fim do túnel.

Documentos novos, dinheiro retirado do banco (uma quantia suficiente para viver por alguns meses). O destino estava escolhido: um lugarejo no sul da Escócia. A plástica já estava marcada, sob um terceiro nome, justificada pela necessidade de parecer-se menos com aquele ator tão aclamado. Nada menos que infernal era ser perseguido por pessoas que julgavam-no alguém famoso. Chamou, então, o sósia à sua casa.

A pequena arma de mão estava pronta. Duas balas e um silenciador. Jogo rápido. Por mais desvendável que o crime pudesse ser (malditas impressões digitais que sempre entregam tudo), ele jamais seria encontrado. E também, ninguém quereria manchar a reputação de um nome tão forte do show business. O suicídio seria aceito e propagado pela mídia tão facilmente quanto toda aquela felicidade falsa.

Um toque na campainha. Era domingo. A esposa estava em viagem, e os empregados estavam de folga, devendo encontrar o corpo apenas no dia seguinte. Por incrível que pudesse parecer, nenhum paparazzo espreitava pelos altos muros da casa. O universo conspirava a seu favor.

O sósia entrou no hall da mansão e foi conduzido pelo ator à sala de visitas, que ofereceu-lhe o melhor whisky escocês disponível (afinal, todo homem merecia uma boa dose de scotch antes de morrer). Sentaram-se nas confortáveis poltronas da sala, em frente à lareira. Conversaram tranquilamente. Ele estava a um tiro da liberdade.

A ideia do tiro ainda o incomodava. Evidências demais sairiam dali, além do quê, o pequeno revolver (que mais lembrava um grampeador que uma arma) era perfeito para seu uso, e detestaria ter de deixá-lo ali. Pediu licença ao convidado, alegando ir buscar algo para servir-lhe. Um café e um travesseiro.

Serviu o café e voltou à mesa afastada do campo de visão do sósia na qual apoiara a baixela. O travesseiro era grande. Alguns segundos e aquela cópia tão exata de si mesmo sentiria sua vida se esvair. O remorso o incomodou. Aquilo teria de valer à pena. Seria feliz, nem que fosse apenas para compensar seu ato. Surpreendeu sua vítima por trás, o confortável travesseiro negro empurrando e imprensando a cabeça do futuro morto contra o encosto da poltrona de couro marrom. O nervosismo do sósia acelerou o processo. Em poucos segundos, o assassino estava sozinho.

O ator vestiu o cadáver com seu pijama e o deitou na cama King Size, de bruços, como costumava dormir. Sua morte seria pública em breve. Não a sua, a do famoso e aclamado comediante. Ele agora era Willem Robinson, um simples trabalhador. Um homem livre.

Em memória de Robin Wiliams. Que ele esteja livre, agora.

(Tentativa de) Amor Medieval

Era uma vez, uma camponesa que vivia nos campos, a campesinar. Era diferente das outras camponesas, que passavam seus dias a sonhar com futilidades e não se arriscavam. A camponesa gostava de passear pelos campos, sozinha ou, quando muito, acompanhada do cão magrelo de casa. Gostava de fugir das pessoas, em especial das outras camponesas. Até gostava de algumas, mas todas falavam demais, sufocavam seus pensamentos, e ela gostava de pensar.

Naquele dia, em seu passeio, o cão a acompanhava. Tinham andado muito, a vila não mais podia ser vista. Já havia se descalçado, a grama irregular abraçava seus pés não-tão-delicados-assim. Quando deu por si, estava às portas do bosque de caça da nobreza e podia ver o enorme castelo que abrigava a corte, ao longe, no topo de uma colina. Cansada, recostou-se em um dos pinheiros frondosos que abriam o bosque e adormeceu, o calor do sol suave em seu rosto.

Acordou de sobressalto com os latidos do cão. Anoitecia, e o barulho de cascos no chão, razão dos latidos, tornava-se mais alto. Ouviu o sibilar de um tiro de arco e uma flecha encravar-se na madeira de uma árvore próxima.

Quis correr, mas não conseguiu. Estava paralisada de medo, e curiosa sobre quem seria. O som continuava a se aproximar e, pouco tempo depois, ela pode vê-lo: um moço ricamente vestido e com ares de nobre diminuía o passo da égua castanha que montava. Realocou o arco no ombro e desmontou, intuindo recuperar a flecha perdida.

Magrelo soltou um meio latido e o jovem virou-se para ele. À visão da mão estendida, o cão trotou na direção do nobre. Ela seguiu o animal e, surpresa pela cena, soltou uma interjeição curta e aguda. Tapou a boca com ambas as mãos ao olhar confuso do moço.

– Perdão, meu senhor, se lhe assustei
Não foi a intenção, não mais o farei
Permita que eu volte ao aconchego do lar
Nada fiz de errado e não o quero incomodar

Ela encarou o chão, com medo, perdendo a visão do sorriso acolhedor dele.

– Pequena donzela, nada há que se perdoar
Podes, se quiser, voltar a seu lar.
Ofereço-lhe a escolta, há os perigos da hora
E, no lombo de minha égua, chegarás sem demora.

– Por que me escoltarias? Sou simples camponesa!
Já tu és jovem nobre, parte da realeza.

– O título não muito me importa
Quando já conquistastes minha afeição
Segura deves chegar, não morta
Proteger-te faz-se minha missão.

A camponesa não protestou. O jovem também já havia conquistado sua afeição, inexplicavelmente.

Na vila, todos impressionaram-se com a gentileza do jovem, o príncipe, para com ela. Ele a levara até sua choupana e beijara-lhe a mão, como se fosse ela própria uma nobre.

Ela pegava-se pensando nele. Durante todas as horas do dia e da noite, de todos os dias e todas as noites. Dizia a si mesma que deixasse de ser tola: ele havia sido gentil e só. Ela tornara às portas do bosque algumas vezes, mas em nenhuma delas tivera qualquer sinal do jovem príncipe.

Dias depois, o pai tivera de ir aos arredores do castelo, e a camponesa o acompanhara. Deus ouvira suas preces: estavam na rua principal do vilarejo quando a comitiva real passou. O príncipe a vira e acenara, mas não pudera parar.

De volta à vila, ela logo partiu para os arredores do bosque. Não demorou muito para que o trote da égua se fizesse ouvir. Ele desmontou rapidamente e tomou-a nos braços, com ternura.

– Jovem donzela, quantas saudades senti!
Passei todos esses dias com o pensamento em ti!

– Por que demoraste tanto a retornar?
Esperei por ti, príncipe, o procurei sem cessar!
Toda essa saudade já me tomava o ar!

O olhar do príncipe indicava a tristeza que sentia.

– O que sinto, donzela, me impressiona
Não pensei que encontraria o amor assim, tão cedo.
Juro que não quero magoá-la, mas tenho medo
pois não posso desposá-la, fazer de ti minha dona.

– Compreendo, meu príncipe, a razão de estares angustiado
Teu título, tua nobreza, não permitem que sejas meu
Pediria que lutasses, lutasses para ficar a meu lado
Mas tua luta não mereço, plebeia que sou eu.

Ele tocou-lhe o rosto, erguendo o olhar baixo dela em direção ao dele.

– Donzela, és mais digna que qualquer princesa.
Em tua pessoa, nada se vê de tua pobreza.
És digna, conquistaste meu amor com tua beleza.
Minha rainha tu é que deverias ser, camponesa.

Seus lábios tocaram-se.

– Meu amado príncipe, lutarieis tu por mim?
É meu desejo ser tua, de agora até o fim.
Magoa-me muito que deva ser assim
Lutar por permissão, para ao amor dizer ‘sim’.

– Por ti lutarei, se me permites fazê-lo.
Espere por mim, te faço esse apelo.
Donzela, estarás sempre em meu pensamento
e virei buscar-te, quando for o momento.

Ele montou a égua e partiu. O cão ganiu ao choro da camponesa.

Estações passaram-se. A camponesa caçou, cortou a lenha e limpou os campos no outono; lidou com a neve e o comércio de pele e de caças no inverno; e semeou na primavera, sem nunca mudar seus hábitos, apenas esperando. A esperança fazia com que tocasse a vida sem medo.

O verão estava de volta.  A colheita estava próxima. Os dias eram quentes, então a camponesa passava a maior parte deles aguando e cuidando da horta do pai e era exatamente nessa tarefa que trabalhava quando, num início de tarde, ouviu os cascos de um cavalo baterem no chão. Seu coração deu um salto. Limpou as mãos nas saias e saiu para ver o que era.

Parado na porta da choupana, o príncipe falava ao camponês pai. O velho senhor parecia satisfeito com as palavras do nobre.

– Senhor, amo tua filha e desejo desposá-la
Mas, para isso, para longe devo levá-la
Abdiquei, abri mão de minha nobreza
Se não posso ser feliz, de que uso é a realeza?
Prefiro ser plebeu, desprovido de riqueza
e sentir-me completo, ao lado da camponesa.

– Jovem nobre senhor, tens a minha permissão.
Fazendo dela mulher honesta, lhe concedo sua mão
Não se preocupe, para ajudar-me, tenho um filho e um irmão.
Fujam logo, fujam logo, escondam-se na procissão.

A camponesa já estava pronta. Levava uma muda de roupas, algum dinheiro e poucos objetos pessoais. A procissão não demoraria a passar pela vila, e os dois seguiriam com ela até estarem seguramente longe. Ele despojou-se das vestes ricas, trocando-as por roupas simples do irmão da jovem, e da égua. Pouco mais tarde, ela se despediu a família e os dois partiram.

Os peregrinos andaram por dias e dias até que o casal encontrasse vila que os acolhesse. Era uma vila pequena, e todos pareciam amigáveis. Em algumas semanas, com a ajuda dos vilões, a pequena choupana dos dois estava de pé: uma cama de palha, uma tentativa de fogão, uma lareira e uma mesa de madeira com banquinhos.Era aconchegante, pequena o suficiente para ser aquecida pela lareira em todos os seus pontos.

Casaram-se assim que a casa ficou pronta, apenas uma benção do padre que, compadecido, escondeu a identidade do noivo, não reportando o acontecimento ao duque do feudo como algo além de uma união comum entre dois plebeus. Logo após a união, o casal mudou-se para a choupana. O príncipe tornou-se ferreiro e carpinteiro, enquanto a camponesa mantia-se a caçar e a cuidar da casa, da horta e, eventualmente, do filho.

O título abdicado do príncipe jamais viria a lhe causar problemas. Com seu desaparecimento, o segundo filho do rei herdou o trono e tornou-se um rei muito melhor do que o irmão jamais teria sido.

Eram uma família feliz.

– Sou feliz a teu lado, minha cara amada.
Na arte de viver, fui teu aprendiz.
Nossa vida simples me faz muito mais feliz
que qualquer riqueza advinda do nada.
Foi escolha sensata, partirmos de lá.
Veja, construímos, e tudo está tão bem cá!
Obrigado, mulher, por tão bem de mim cuidar
Amo-te, e sempre a ti hei de amar.

– Fizestes um grande sacrifício por mim
Largar a nobreza e fugir sem destino
Éramos, então, menina e menino
Querendo se amar, sem nenhum outro fim.
Hoje tudo é direito, vivemos na paz e no amor
A harmonia do lar dá-nos, pro trabalho, o necessário vigor
Agradeço sempre a Deus por ter tanta sorte
E eu sei que te amarei até depois da morte.

O sol se punha, iluminando a casa pela janela dos fundos. Abraçaram-se e ao garoto. O amor e a felicidade ali seriam soberanos para todo o sempre.

Reencontro (Parte 5): O Depois

Dois meses passaram-se. Ele voltou para a Suíça, ela para sua cidade interiorana.

Naquele dia, acabara de chegar de volta à cidade do reencontro. Pegaria o avião no fim da tarde.

Vendera quase tudo o que tinha. Dera o aviso prévio no emprego logo que voltara de viagem e contara à família. A mãe e a irmã não foram a favor logo de cara, acharam-na precipitada, mas acabaram concordando que ela não tinha nada a perder e, eventualmente, fizeram as pazes com a ideia.

Gaia e a mãe possuíam, agora, duas malas grandes de roupa e sapatos cada uma, além do estimado urso da menina. Os livros dela, o violão e alguns outros objetos pessoais tinham sido despachados previamente e ele os recebera na semana anterior.

Ela sentiu o celular vibrar na entrada para a sala de embarque.

“Sinto a sua falta. Está tudo pronto aqui, só esperando por vocês. Tô ansioso. Vê se não atrasa, hm? :p”

Ela se apressou a respondê-lo: “Também sinto a sua falta e também tô ansiosa :p Não vou atrasar, bobo. Na verdade, já estamos pra embarcar.”

“Bom, boa viagem. Estarei no aeroporto com casacos felpudos e abraços quentinhos pra vocês.”

“Abraços quentiiiiinhos :3 Entrando aqui. Gaia não sossega de ansiosa. Até aqui a algumas horas, beloved. Amo você. Amamos você.”

“:3 Amo vocês também =*”

A viagem, apesar de longa, passou rápido. As duas viram desenho e dormiram durante a maior parte das 11 horas de deslocamento e, quando chegaram a Berna, já era manhã na cidade.

Estava frio. Ela vestiu a filha com cachecol, gorro e jaqueta, mas Gaia ainda tremia a cada brisa. O mesmo valia para ela, e agradeceu mentalmente pelos casacos felpudos e abraços quentinhos que as esperavam.

Colocou as malas no carrinho após ter seus documentos conferidos pela terceira ou quarta vez. Gaia sentou-se em cima da mala maior, com o ursinho numa mão e chocolate do avião na outra.

Avistaram-no. Usava jeans, camisa de gola e mangas compridas e tênis, e tinha os casacos felpudos prometidos pendurados no braço direito. Ela empurrou o carrinho na direção dele, que sorriu ao identificá-las e veio andando em direção a elas.

Ao se encontrarem, ele a abraçou e a beijou enquanto cobria seus ombros com o casaco. Depois, vestiu Gaia, que também o abraçou.

– Vamos pra casa? – perguntou, sorrindo. Ela sorriu de volta e segurou a mão da filha enquanto ele empurrava o carrinho com as malas em direção ao carro.

– Mãe! – Gaia puxava a manga do casaco dela, como se quisesse que ela abaixasse. Ela ergueu a filha, que sussurrou em seu ouvido: – Ele vai ser meu papai?

– Você quer que ele seja? – ela perguntou, e a menina fez que sim com a cabeça. – Pergunte a ele se ele quer, então.

Gaia desceu do colo da mãe e andou em direção a ele.

– Tio Vi… –  ela puxou a barra do casaco dele. Não podia alcançar a manga. Ele parou e acocorou-se de frente para a menina.

– Diga, princesa. –  ela observava a cena, comovida.

– Você quer ser meu papai?

Ele se emocionou. Ergueu-a no colo, abraçou-a e beijou-a.

– Claro que quero, meu amor. Claro que sim.

Continuaram andando para o carro, um ao lado do outro, Gaia nos ombros dele.

A tão esperada felicidade tinha chegado.

Reencontro (Parte 4): O Jantar

O hotel oferecia serviços de babá, então ela pôde sair tranquila e deixar a filha dormindo no dormitório infantil. Arrumara-se ao máximo, mas as roupas e o que tinha para o cabelo não a haviam ajudado muito. Apanhou o táxi na porta e, em meia hora, chegou ao ponto de encontro. Ele já esperava por ela, como de costume.

– Chegou há muito?

Ele a abraçou.

– Não muito. Oi.

– Oi – ela o beijou no rosto – Dormiu bem?

– Sonhei contigo.

– High five então – ela levantou a mão.

– Você também sonhou contigo? – Ela riu.

– Não, mané. Sonhei com você.

Ele a beijou. Ela pode perceber sua paixão antiga acordando do coma a que fora induzida.

Precisava tomar uma decisão. Já sofrera o suficiente quando ele se separara dela, e de novo quando fora embora. Era muito jovem, não soubera estar apaixonada, o sofrimento também não havia sido fácil. Não queria sofrer de novo.

Ele não iria ficar. Tinha uma vida na Europa, sua família era prioridade e estava lá, ele não os abandonaria. Ela não queria sofrer de novo.

– Eu não posso.

– Desculpe.

Ele tirou as mãos dela. Ela o abraçou.

– Foi difícil. Quando você foi embora.

– Não foi difícil só pra você.

Houve um silêncio incômodo.

– O que aconteceu com a gente?

– A vida aconteceu, amor.

– E o que vai acontecer?

– Eu não sei.

Andaram em silêncio por um tempo, observando o belo trabalho de mosaico da calçada.

– Sabe, eu ainda te quero tanto quanto antes. Mas eu sei que você não vai ficar. Sei que não pode, que sua vida está lá.

Ele a abraçou por um longo tempo.

– O que é que te prende aqui?

Ela pensou. A busca pelo filho. A mãe, a irmã. Ele pareceu ler os pensamentos dela.

– Podemos continuar a procurar pelo seu filho. Emprego pra jornalista é o que não falta na Europa. Gaia terá uma boa educação, e poderemos visitar sua mãe e sua irmã sempre que for possível.

Não existiam pontos negativos na possibilidade, mas ela temia. Era um passo grande.

– Isso exige muito planejamento, eu não sei se tenho dinheiro o suficiente. Onde eu moraria? Quem ficaria com a Gaia enquanto eu trabalho?

– Se é isso o que te preocupa, não existe razão para preocupação. Dá-se um jeito. Tenho dois apartamentos desocupados, um no norte da França e um no sul da Inglaterra, você com certeza poderia ficar em um deles, se preferir não vir morar comigo em Berna. As melhores escolas lá são de tempo integral, não teria de se preocupar com Gaia durante o trabalho.

Ela pensou. Quando o silêncio pesou, ele o quebrou.

– Eu amo você, Leoa – e tocou a ponta do nariz dela com o indicador.

Ela estremeceu. A familiaridade do gesto trazia boas lembranças.

– Eu também amo você, Urso.

Se olharam, em silêncio, por um segundo.

– Bem, não precisa decidir isso agora. Podemos decidir o que vamos comer primeiro, né? Tô com fome! – ele indicou a porta do restaurante com um sorriso bobo no rosto.

Entraram, pediram, jantaram e conversaram, sobre coisas que tinham feito e sobre o que ainda queriam fazer e, ao fim do jantar, o vinho já a havia ligado. Ela estava elétrica, como se tudo ao redor estivesse devagar demais, e contia com dificuldade a vontade de beijá-lo.

Ele a levou até o ponto de táxi e esperou pelo transporte com ela. Continuaram a conversar, e pareceu pouco o tempo que o táxi levou para chegar. Ela o abraçou, para se despedir.

– Eu aceito – ela sussurrou – Aceito morar contigo, se tu prometer não me abandonar.

– Deixe de ser boba, mulher. Quase onze anos do outro lado do oceano e não te abandonei. Isso não vai…

Ela o puxou pelo colarinho e o beijou. Entraram os dois no carro e logo chegaram ao hotel.

– // –

Acordou num susto, e levou outro susto ao encontrar a mão dele quando a buscou. A felicidade inundou sua alma como nunca antes. Aninhou-se no peito dele, o lugar mais confortável do mundo.

– Bom dia, pequena – ele a beijou na têmpora com carinho, o corpo nu ainda colado ao dela – O que temos pra hoje?

– Pegar a Gaia no dormitório e tomar café. – Ela sentiu o volume que tocava seu ventre e se animou – Mas acho que isso pode esperar.

Ele sorriu.

Reencontro (Parte 3): Filhos

O café tinha sido excelente. Atualizaram-se sobre as carreiras um do outro – de sucesso, apesar dos dramas pessoais. Ele trabalhara em vários países da Europa ocidental, tendo ficado por mais tempo na ilha britânica, entre Escócia e Inglaterra. Ela, por sua vez, transitara entre as duas grandes cidades do país a trabalho, durante alguns anos.

Foram almoçar nos arredores de um museu importante. Haviam passado a maior parte da manhã no parque do museu, conversando sobre as séries e filmes que gostavam e vendo Gaia correr entre as árvores.

No carro, a pequena adormeceu no banco traseiro logo que começaram a se deslocar. Cantaram Elvis juntos no curto caminho até o restaurante e, quando ela começou a pensar em acordar a filha, ouviu a voz infantil perguntar se já tinham chegado.

– Chegamos – ele disse, quase imediatamente.

Durante o almoço, conversaram sobre os filhos.

– Eu tive um menino, antes da Gaia – a voz dela começava a ficar embargada – Meu ex-marido conseguiu a guarda e o levou embora.

Ele parecia achar tudo aquilo absurdo.

– Que tipo de juiz tira um filho de uma mãe? – perguntou, indignado.

– A culpa foi minha. Eu trabalhava demais, viajava muito, ele ficava quase o tempo todo com o pai. Quando nos divorciamos, meu ex exigiu a guarda, e eu… –  ela olhou para cima e respirou fundo. Ele segurou a mão dela, mostrando apoio – … eu não tive como me defender. – Fez-se um silêncio breve e sensível – Não vejo meu menino há cinco anos, desde que perdi a guarda e eles sumiram.

A revolta dele era evidente,

– A gente pode recorrer. Ele não pode fugir com o garoto assim, sem dar satisfações. É violação dos seus direitos de ver seu filho.

– Os detetives que contratei não conseguiram muita coisa. Até a conta bancária em que eu depositava a pensão foi fechada, depois de um tempo.

Ela apertou a mão dele e sentiu-se melhor.

– E Gaia? Cadê o pai dela?

– Eu não sei quem ele é.

O estranhamento dele foi instantâneo. Ela gargalhou.

– Gaia é adotada.

Ele riu, incrédulo.

– Tá me dizendo que esse mini clone seu não veio de você, é isso?

– É. Ela mal tinha três meses quando chegou pra mim. Desde que levaram o Hélio embora, eu mudei meus hábitos, para tentar recuperá-lo. Depois que eles sumiram, ao mesmo tempo em que eu os procurava, entrei no processo de adoção. Não esperava conseguir adotar tão rápido, o assistente disse que ia demorar por causa do meu histórico. Foram onze meses esperando. Acho que ela não chegou a ficar nem duas semanas direito no sistema. Tanto que nem tinha registro definitivo e daí pude escolher o nome.

Ele sorria. Ela sentiu o estômago contrair, uma ansiedade estranha, há muito não sentida.

– Eu também tive um filho. Isaac. – Ele sacou a carteira e tirou uma fotografia. Um garoto sorridente, de uns cinco anos, parrudo e branquelo, de olhos verde-azulados e cabelos muito escuros. Lembrava demais o pai. A foto havia sido cortada, ela notou, ao ver uma mão no ombro direito do menino e uma mecha de cabelos ruivos e lisos pairando no canto da foto – Faz seis anos em dezembro.

– Ele é lindo. Mora com a mãe?

– Sim, desde que me separei dela. Sinto muito a falta dele, mas o vejo de quinze em quinze dias, pelo menos. Ele costuma passar as férias escolares comigo, viajando pra onde quer que eu precise ir.

– Mas… Ele veio contigo?

– Não, não dessa vez. Sarah tem medo de avião, e ultimamente prefere que eu não o tire do Reino. Diz que todas essas viagens estão confundindo a cabeça dele, porque misturou Inglês, Português e Francês em um teste oral na escola. Tínhamos acabado de voltar da casa da minha mãe, nas férias de inverno. Tirou nota baixa, e os colegas caçoaram dele, dizendo que ele não sabia falar. Ridículo. Meu garoto é um gênio e as pessoas o oprimem por isso.

– As coisas não mudaram muito desde a nossa época, né?

Ele assentiu.

A comida chegou. Os dois continuaram a conversar enquanto ela ajudava a filha, que conversava com o ursinho, a partir seu bife. Ao fim da refeição, os dois dividiram a conta e ele a levou ao hotel. Precisava voltar à casa dos parentes para a sesta, e o mesmo valia para ela e Gaia.

Combinaram de sair para jantar. Ela entrou no elevador, chegou ao quarto, caiu na cama e adormeceu, com a menina a seu lado.

Sonhou que dormia abraçada a ele.

Reencontro (Parte 2): Primeiros Contatos

A ideia era passarem o dia juntos. Ela não o avisara sobre Gaia, mas ainda se lembrava do quanto ele gostava de crianças, e esperava que com sua pequena não fosse diferente. Encontrariam-se de manhã, para fazerem o desjejum numa padaria famosa da cidade.

Ele estava parado na porta quando ela chegou. Parecia ansioso, e era o mesmo de dez anos antes, exceto pelo aumento na quantidade de cabelos brancos: jeans, tênis pretos, camisa pólo branca, os mesmos óculos retangulares. O cabelo para o lado, exatamente como ela se lembrava, e a barba por fazer. Ela não pode conter o sorriso quando notou que tinha sido vista. Andou para ele, com um pouco de urgência, e o abraçou, sem dizer uma palavra. Ficaram ali por algum tempo, as lágrimas corriam pelo rosto dela.

Ele se afastou, e ela pode olhar para ele com mais calma.

– Puta que pariu, cara, eu senti a sua falta!

Ele sorriu, olhando para ela.

– Eu também senti a sua falta.

Gaia os observava sem emitir qualquer ruído, os olhinhos curiosos. Ele se abaixou para olhar a menina nos olhos.

– Olá, mocinha. Qual é o seu nome?

A menina encarou-o por alguns segundos. Estendeu a mão para tocá-lo, mas logo recuou: a sensação da barba espetando lhe era estranha.

– Você é bonito. Por que seu cabelo tem branco e preto?

A pergunta fez-lhe sorrir.

– Sabe, quando a gente deixa de ser criança, alguns cabelos da cabeça vão ficando brancos.

– Mas mamãe não tem desses. E ela não é criança.

Os dois riram.

– É verdade. Você é muito esperta, mocinha.

– Meu nome é Gaia. Quer dizer ‘terra’. Qual é o seu nome?

– Meu nome é Vinícius. Quer dizer ‘príncipe de bela voz’.

– Eu gosto do seu nome. É ‘Vi’, como o meu ursinho. – a pequena se aproximou dele, a pelúcia na mão, e o abraçou. Ele levantou-se, Gaia ainda pendurada em seu pescoço.

Ela os observava, em silêncio, surpreendida pela filha. Gaia não era uma criança sociável, mas o havia recebido como da família.

Entraram na padaria, imensa. Ele levava a pequena num braço e enganchara o outro no dela. Acomodaram-se numa mesa no canto do estabelecimento e, logo que a garçonete levou os pedidos e que Gaia se distraiu com seu ursinho, ele estendeu o braço sobre a mesa, buscando a mão dela.

– Oi – ela disse, com dificuldade de conter a felicidade.

– Oi – ele deu a ela o sorriso mais bonito que já tinha visto – Como está?

– Feliz. – e deixou de contê-la.

(continua)

Reencontro (Parte 1): A Viagem

Ele estava voltando. Após mais de dez anos, ele estava voltando.

A notícia mexeu com ela de uma maneira sem precedentes.

Depois de muito tempo, ela recebera uma carta. Ele dizia sentir a falta dela e querer vê-la. Tinham ficado muito tempo sem se falar: as obrigações do dia-a-dia pesavam para ambos, fazendo com que a frequência da troca de cartas tivesse sido reduzida às datas de aniversário e de Natal. Mas era Julho, e uma carta chegara, avisando que ele voltaria.

Muito havia acontecido desde a partida dele. Ela havia sido vivido mini aventuras e sido abandonada algumas vezes; casara-se, divorciara-se e perdera a guarda do filho para o ex-marido, que sumira com o menino. Pensara em desistir, mas encontrara forças para se reerguer e construir a vida que tinha, morando com a filha pequena, tão parecida com ela que era difícil acreditar que fosse adotada.

Ela não sabia bem o que havia acontecido com ele durante todo esse tempo. A carreira de diplomata fizera com que ele se mudasse para a Europa, deixando a família para trás. Após um tempo, conseguiu mover a mãe e os avós para uma cidade de médio porte nos arredores de Paris, pela qual passava na maior parte de seus trânsitos no continente. Sabia que ele tivera um filho com uma escocesa, mas nunca soube os pormenores da história dos dois. Tinham muito o que colocar em dia.

Veriam-se em breve. Na carta estava escrito que ele chegaria no fim de semana e ficaria na cidade grande, em casa de parentes. Ela viajaria com sua pequena para vê-lo: oito horas de viagem, planejadas em cima da hora, valeriam a pena quando ela o pudesse rever. Sua alma gêmea, seu melhor amigo estava de volta.

Na sexta feira, logo depois de pegar a pequena na escolinha, acomodou-a no bebê conforto, sentou-se a seu lado e admirou-a por um momento, devaneando sobre o amor que sentia por aquela menina, tão igual ao que sentira e sentia pelo filho perdido. Arrumou as malas ao lado da cadeirinha e dirigiu-se ao assento do motorista do pequeno carro.

A cada quilômetro rodado, sua ansiedade aumentava. O avião estaria pousando a qualquer momento. Teria ele mudado muito desde a última vez que se viram? Ainda seria o mesmo? Pink Floyd tocava baixo no carro, para não prejudicar o sono da pequena Gaia, por quem ela fazia paradas curtas a cada duas horas.

Chegou tarde ao hotel, e muito cansada. Quase não teve energias para cuidar de si e da filha antes de dormir e, quando dormiu, sonhou com os velhos tempos.

(continua)

Primeiro Encontro

Ela estava atrasada. De novo.

Seria a terceira mensagem que mandaria, avisando que iria na próxima hora. “Tudo bem”, ou algo assim, era o que dizia a resposta.

Era quase hora quando ela chegou. Apesar de tudo, o atraso a beneficiaria, fazendo com que sua mãe não soubesse sobre seu encontro secreto com um semi desconhecido.

“Estou aqui”, ou algo assim. Ela pressionou o botão do celular para enviar a mensagem, recostou-se na parede externa do prédio espelhado e esperou, os fones no ouvido.
Pareceu ter esperado uma eternidade. Engravatados entravam e saiam a todo momento. Ela não sabia como ele era além daquela foto de Super Homem, não teria maneira de reconhecê-lo. Estar ali, em segredo, esperando por um desconhecido, era uma aventura para ela. Estava curiosa para conhecê-lo e fazer a troca, receber o tesouro que a aguardava no fim da aventura.

E então, ele estava ali. Apareceu na porta, calças jeans, tênis pretos. Camisa pólo, óculos retangulares, cabelo bem arrumado e barba bem feita. Um engomadinho, sem dúvidas. Não era o moço mais bonito, em padrões, que já tinha visto na vida, mas ela o apreciou desde a primeira visão: engomadinhos eram uma espécie rara e da qual ela gostava.

– Oi… – ele sorriu, o desconcerto do primeiro contato em pessoa.

– Oi… Então… – ela pensou que a voz dele era agradável.

– Aqui – ele entregou o livro. Um segundo silencioso se passou, enquanto ela admirava o tesouro – Gosta de Beatles, né?

Ela se sentiu importante. Alguém tinha reparado em sua bolsa coberta de bottons e, talvez, em sua camiseta/uniforme do Sgt. Peppers. Sorriu.

– É – disse, ainda sorrindo. Compartilharam um momento, falando sobre a banda e sobre suas experiências de show. Paul McCartney é realmente um deus, o cara é mais que incrível.

– Bom, tenho que voltar agora.

– Tá bem.

Abraçaram-se. Foi um abraço meio sem jeito, devido a diferença de estatura entre os dois, mas ela gostou. Era muito pequena para abraçar alguém tão grande pelos ombros, como fazem os não íntimos.

Ele passou pela porta de novo, sumindo da vista dela. Ela andou para longe do prédio espelhado, pensando em sua aventura recém-acabada. Tinha o tesouro em sua posse, mas apreciara mais o momento com o mensageiro do que apreciava possuir o livro. Pensou naquele moço e em quão bom seria se ela fosse parte da vida dele.

Foi andando e pensando, sem imaginar que sua aventura do dia marcava o início de uma aventura muito maior.