Era uma vez, uma camponesa que vivia nos campos, a campesinar. Era diferente das outras camponesas, que passavam seus dias a sonhar com futilidades e não se arriscavam. A camponesa gostava de passear pelos campos, sozinha ou, quando muito, acompanhada do cão magrelo de casa. Gostava de fugir das pessoas, em especial das outras camponesas. Até gostava de algumas, mas todas falavam demais, sufocavam seus pensamentos, e ela gostava de pensar.
Naquele dia, em seu passeio, o cão a acompanhava. Tinham andado muito, a vila não mais podia ser vista. Já havia se descalçado, a grama irregular abraçava seus pés não-tão-delicados-assim. Quando deu por si, estava às portas do bosque de caça da nobreza e podia ver o enorme castelo que abrigava a corte, ao longe, no topo de uma colina. Cansada, recostou-se em um dos pinheiros frondosos que abriam o bosque e adormeceu, o calor do sol suave em seu rosto.
Acordou de sobressalto com os latidos do cão. Anoitecia, e o barulho de cascos no chão, razão dos latidos, tornava-se mais alto. Ouviu o sibilar de um tiro de arco e uma flecha encravar-se na madeira de uma árvore próxima.
Quis correr, mas não conseguiu. Estava paralisada de medo, e curiosa sobre quem seria. O som continuava a se aproximar e, pouco tempo depois, ela pode vê-lo: um moço ricamente vestido e com ares de nobre diminuía o passo da égua castanha que montava. Realocou o arco no ombro e desmontou, intuindo recuperar a flecha perdida.
Magrelo soltou um meio latido e o jovem virou-se para ele. À visão da mão estendida, o cão trotou na direção do nobre. Ela seguiu o animal e, surpresa pela cena, soltou uma interjeição curta e aguda. Tapou a boca com ambas as mãos ao olhar confuso do moço.
– Perdão, meu senhor, se lhe assustei
Não foi a intenção, não mais o farei
Permita que eu volte ao aconchego do lar
Nada fiz de errado e não o quero incomodar
Ela encarou o chão, com medo, perdendo a visão do sorriso acolhedor dele.
– Pequena donzela, nada há que se perdoar
Podes, se quiser, voltar a seu lar.
Ofereço-lhe a escolta, há os perigos da hora
E, no lombo de minha égua, chegarás sem demora.
– Por que me escoltarias? Sou simples camponesa!
Já tu és jovem nobre, parte da realeza.
– O título não muito me importa
Quando já conquistastes minha afeição
Segura deves chegar, não morta
Proteger-te faz-se minha missão.
A camponesa não protestou. O jovem também já havia conquistado sua afeição, inexplicavelmente.
Na vila, todos impressionaram-se com a gentileza do jovem, o príncipe, para com ela. Ele a levara até sua choupana e beijara-lhe a mão, como se fosse ela própria uma nobre.
Ela pegava-se pensando nele. Durante todas as horas do dia e da noite, de todos os dias e todas as noites. Dizia a si mesma que deixasse de ser tola: ele havia sido gentil e só. Ela tornara às portas do bosque algumas vezes, mas em nenhuma delas tivera qualquer sinal do jovem príncipe.
Dias depois, o pai tivera de ir aos arredores do castelo, e a camponesa o acompanhara. Deus ouvira suas preces: estavam na rua principal do vilarejo quando a comitiva real passou. O príncipe a vira e acenara, mas não pudera parar.
De volta à vila, ela logo partiu para os arredores do bosque. Não demorou muito para que o trote da égua se fizesse ouvir. Ele desmontou rapidamente e tomou-a nos braços, com ternura.
– Jovem donzela, quantas saudades senti!
Passei todos esses dias com o pensamento em ti!
– Por que demoraste tanto a retornar?
Esperei por ti, príncipe, o procurei sem cessar!
Toda essa saudade já me tomava o ar!
O olhar do príncipe indicava a tristeza que sentia.
– O que sinto, donzela, me impressiona
Não pensei que encontraria o amor assim, tão cedo.
Juro que não quero magoá-la, mas tenho medo
pois não posso desposá-la, fazer de ti minha dona.
– Compreendo, meu príncipe, a razão de estares angustiado
Teu título, tua nobreza, não permitem que sejas meu
Pediria que lutasses, lutasses para ficar a meu lado
Mas tua luta não mereço, plebeia que sou eu.
Ele tocou-lhe o rosto, erguendo o olhar baixo dela em direção ao dele.
– Donzela, és mais digna que qualquer princesa.
Em tua pessoa, nada se vê de tua pobreza.
És digna, conquistaste meu amor com tua beleza.
Minha rainha tu é que deverias ser, camponesa.
Seus lábios tocaram-se.
– Meu amado príncipe, lutarieis tu por mim?
É meu desejo ser tua, de agora até o fim.
Magoa-me muito que deva ser assim
Lutar por permissão, para ao amor dizer ‘sim’.
– Por ti lutarei, se me permites fazê-lo.
Espere por mim, te faço esse apelo.
Donzela, estarás sempre em meu pensamento
e virei buscar-te, quando for o momento.
Ele montou a égua e partiu. O cão ganiu ao choro da camponesa.
Estações passaram-se. A camponesa caçou, cortou a lenha e limpou os campos no outono; lidou com a neve e o comércio de pele e de caças no inverno; e semeou na primavera, sem nunca mudar seus hábitos, apenas esperando. A esperança fazia com que tocasse a vida sem medo.
O verão estava de volta. A colheita estava próxima. Os dias eram quentes, então a camponesa passava a maior parte deles aguando e cuidando da horta do pai e era exatamente nessa tarefa que trabalhava quando, num início de tarde, ouviu os cascos de um cavalo baterem no chão. Seu coração deu um salto. Limpou as mãos nas saias e saiu para ver o que era.
Parado na porta da choupana, o príncipe falava ao camponês pai. O velho senhor parecia satisfeito com as palavras do nobre.
– Senhor, amo tua filha e desejo desposá-la
Mas, para isso, para longe devo levá-la
Abdiquei, abri mão de minha nobreza
Se não posso ser feliz, de que uso é a realeza?
Prefiro ser plebeu, desprovido de riqueza
e sentir-me completo, ao lado da camponesa.
– Jovem nobre senhor, tens a minha permissão.
Fazendo dela mulher honesta, lhe concedo sua mão
Não se preocupe, para ajudar-me, tenho um filho e um irmão.
Fujam logo, fujam logo, escondam-se na procissão.
A camponesa já estava pronta. Levava uma muda de roupas, algum dinheiro e poucos objetos pessoais. A procissão não demoraria a passar pela vila, e os dois seguiriam com ela até estarem seguramente longe. Ele despojou-se das vestes ricas, trocando-as por roupas simples do irmão da jovem, e da égua. Pouco mais tarde, ela se despediu a família e os dois partiram.
Os peregrinos andaram por dias e dias até que o casal encontrasse vila que os acolhesse. Era uma vila pequena, e todos pareciam amigáveis. Em algumas semanas, com a ajuda dos vilões, a pequena choupana dos dois estava de pé: uma cama de palha, uma tentativa de fogão, uma lareira e uma mesa de madeira com banquinhos.Era aconchegante, pequena o suficiente para ser aquecida pela lareira em todos os seus pontos.
Casaram-se assim que a casa ficou pronta, apenas uma benção do padre que, compadecido, escondeu a identidade do noivo, não reportando o acontecimento ao duque do feudo como algo além de uma união comum entre dois plebeus. Logo após a união, o casal mudou-se para a choupana. O príncipe tornou-se ferreiro e carpinteiro, enquanto a camponesa mantia-se a caçar e a cuidar da casa, da horta e, eventualmente, do filho.
O título abdicado do príncipe jamais viria a lhe causar problemas. Com seu desaparecimento, o segundo filho do rei herdou o trono e tornou-se um rei muito melhor do que o irmão jamais teria sido.
Eram uma família feliz.
– Sou feliz a teu lado, minha cara amada.
Na arte de viver, fui teu aprendiz.
Nossa vida simples me faz muito mais feliz
que qualquer riqueza advinda do nada.
Foi escolha sensata, partirmos de lá.
Veja, construímos, e tudo está tão bem cá!
Obrigado, mulher, por tão bem de mim cuidar
Amo-te, e sempre a ti hei de amar.
– Fizestes um grande sacrifício por mim
Largar a nobreza e fugir sem destino
Éramos, então, menina e menino
Querendo se amar, sem nenhum outro fim.
Hoje tudo é direito, vivemos na paz e no amor
A harmonia do lar dá-nos, pro trabalho, o necessário vigor
Agradeço sempre a Deus por ter tanta sorte
E eu sei que te amarei até depois da morte.
O sol se punha, iluminando a casa pela janela dos fundos. Abraçaram-se e ao garoto. O amor e a felicidade ali seriam soberanos para todo o sempre.